Cansada de ser vítima de violência doméstica e sofrer ameaças do marido, Maria Clara* foi até a delegacia registrar um boletim de ocorrência. Enquanto era atendida pelos policiais, o agressor passou a mandar fotos pelo celular dos animais de estimação da vítima — um coelho e duas calopsitas — mortos, na tentativa de intimidá-la a não realizar a denúncia. O caso ocorreu em Luziânia, a cerca de 56 km do Distrito Federal, em 20 de novembro.
Esse episódio não é isolado. Segundo a Teoria do Elo, os maus-tratos contra animais e a violência doméstica estão relacionados e fazem parte de um ciclo intergeracional. A crueldade é um indicador de problemas no ambiente familiar, especialmente para os grupos mais vulneráveis: mulheres, crianças e idosos.
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“O agressor ameaça ou até violenta o animal da vítima humana para intimidá-la e chantageá-la. Dessa forma, a vítima desiste de sair do lar e de romper o ciclo [de violência], com medo que possa acontecer alguma retaliação ao seu animal”, explica a médica veterinária Luciana Vargas Santana, especializada em medicina veterinária legal e saúde pública.
Os especialistas ouvidos pelo R7 afirmam que, atualmente, as famílias são multiespécies, isto é, os pets alcançaram a posição de membros. Em razão dessa importância dentro do lar, eles se tornam alvos fáceis e podem ser usados como ferramentas de domínio pelos algozes.
Segundo o último levantamento do Instituto Pet Brasil de 2021, há mais de 149 milhões de animais de estimação no país, sendo 58,1 milhões de cachorros e 27,1 milhões de gatos. Em média, sete em cada dez lares brasileiros possuem pets.
Coronel da Polícia Militar de São Paulo e consultor do Instituto Ampara Animal, Marcelo Robis constata que muitas mulheres deixam de denunciar os agressores com medo do que pode acontecer com seus animais.
Outras não conseguem sair de casa porque a maioria dos centros de acolhimento não aceita a entrada de bichos.
“Então, elas ficavam aguentando a violência física e psicológica do marido”, afirma o coronel.
Em 2022, todas as formas de crimes contra a mulher apresentaram crescimento, segundo os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023. No país, foram registrados 245.713 casos de violência doméstica e 613.529 de ameaça. Os números podem ser ainda maiores em razão das subnotificações.
Ciclo intergeracional
Os agressores costumam compartilhar o mesmo histórico: uma infância atravessada por episódios de violência, de acordo com Robis.
Por isso, a Teoria do Elo define a ligação da crueldade animal e da violência doméstica como intergeracional, ou seja, a exposição a um ambiente familiar agressivo leva à sua reprodução no futuro.
“As crianças que são cruéis com os animais devem ser vistas como uma bandeira vermelha ou uma sentinela de que ali há um ambiente familiar degradado. Elas tendem a desenvolver os mesmos comportamentos dos pais quando crescem”, diz o coronel.
Para a médica veterinária, a interrupção do ciclo de violência, perpetuado de geração em geração, deve acontecer já na infância.
“A criança que vive em um lar violento, mesmo como espectadora, também está sofrendo violência ao ver a sua mãe ou o seu animal sendo violentados. E, na sua vida adulta, ela pode repetir esse padrão”, fala Luciana.
Denúncias
Basicamente, há três formas de descobrir se uma mulher está sofrendo violência doméstica: pela denúncia da própria vítima, pela denúncia de vizinhos ou pela identificação de maus-tratos contra seus animais de estimação.
Por isso, o papel do médico veterinário é de suma importância nesse contexto.
“Existem situações em que os vizinhos se sentem mais confortáveis em denunciar os maus-tratos aos animais do que a violência contra a mulher. Nesses casos, o veterinário do município — que vai receber aquela denúncia e fazer a abordagem naquela residência — pode levantar algumas suspeitas ou pode até mesmo ouvir um pedido de socorro da vítima”, explica Luciana.
À reportagem o coronel também reforçou que os policiais militares e civis têm papel fundamental no atendimento dessas ocorrências, já que os episódios não podem ser interpretados de forma isolada.